sexta-feira, 10 de dezembro de 2021

Tarde de domingo

 Tarde de domingo

Antes de me deitar um tanto inclinada como fazem os velhos depois do almoço, olhei pela janela e contemplei ao longe palavras como nuvems sobre as águas da baía de Guanabara. Mas é de silêncio que vou decantando e depurando o que ainda não sei desenhar ou dizer. É como a ave que sobrevooa querendo pousar. Nas palavras guardo silêncios. Talvez. O abraço em contorno no nada. 

O que eu queria dizer é que tem épocas em que as águas mansas turvas lodosas se  mantém como que mulher de meia  idade. Aquelas que como eu caminha de pés no chão, a lata d'água na cabeça, mãos em cuia pra colher a chuva.  Tentei ouvir o marulho das palavras, a linguagem das chuvas. O balanço aqui dentro das águas.  O comunicado dos rios.  Eu vou me deitar ao som do irbiri e búzios. 


Vizinhos chamando Miguel ! Miguel! Miguel! É uma criança que me sorri toda vez que me encontra  e os seus amiguinhos perguntaram a ele  o que eu era dele pra tanta conversa e afeto. Ele então respondeu a todos na rua: é minha amiga ! Meu coração se encheu d'água por um ser de tão tenra idade se  meter na vida com tal qualidade de comprometimento me despertou um tempo que se descortina - pelo menoa para mim -, em meio a um mundo descartável e desamoroso. Miguel me vê e se me encontra dá o valor de nossa existência a cada travessia e encruzilhada.  Eu tenho essa mania na vida de tempos disjuntos.  No entanto, o tempo é a ágora de todos os agoras construídos por mim a cada encontro e a cada despedida.  Como se Miguel tivesse até nascido antes de mim. Ele parece aqueles pais que ninguém dá sossego, chamando Miguel Miguel Miguel.  Então eu penso, meu deus! Porque não deixam Miguel em paz. O olhar de Miguel parece saber das linhas  do coração. E quando os olhos dele pousam nos meus eu sinto que ele vê o meu coração e quando alguém raramente vê o meu coração eu me consterno toda numa quase timidez. Nunca vi Miguel chorar. Eu escuto e ausculto o choro dele como fosse no quarto ao lado ou na rua voltando pra casa.  Ele encara tudo como que  encarnado  em si um anjo. Às vezes, Miguel me empresta as suas asas ao meu coração e ele me transforma na menina que voa. Será ele me cobre com suas asas... (?) Sem distinção de bem  mal aprendo a ser pétala  pássaro nuvem e voo acima das nuvens. Nos olhos de Miguel eu posso ser eu. E isso, por vezes, só uma criança especial é capaz de tanta grandeza. 

Miguel, dos meus cansaços tu me nina !

Agora sim posso me deitar e  sonhar. Adormecer na lembrança do teu olhar cujos sentimentos criados por ti me sublimam e me trazem luz ao coração como se acendessem vaga lumes de  esperanças em algumas sombras de mim. Nesta tarde de domingo é Miguel quem, no silencio,  pousa suas asas-olhar-palavras em mim. 

Alessandra Espínola 

Rio, novembro de  2021.

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