sexta-feira, 10 de dezembro de 2021

Filha do fogo..

 Fragmentos:


Filha do fogo e da água.  Corpo de  barro , chuva, pedra, magma. Água pura..sangue vivo de uma terra que se ajuntou de verde vermelho branco azul amarelo brasão. Açafrão. Turquesa azul - delicadeza dos  mares nos  azulejos. O lustre. A taça.  As xícaras. Os pratinhos de pira louça porcelana desenhados à mão. Nossa senhora acesa dourada preta azulada no alpendre, iluminando o batente onde dormi toda uma vida. Dormia nos braços alvoroçados das ondas e das chuvas espumosas e intermináveis. Amanhecia como em sonho na casa de barro moldando ainda na mãos desta terra viva noventa e silenciosa como o tabaco de meu pai.  A fumaça do fogareiro, do fumo, do fogo de monturo enchendo as manhãs, o quintal , a casa, era toda eu névoa. Era toda eu casa. Quintal. E chão. Era fogo! Sob os olhos do pai-vô. Os tamancos de madeira sarandavam no chão de taco tb de madeira escurecida  brilhante e batiam como quem bate a porta das manhãs convocando a menina ao café e ao trabalho. A descoberta e_laboração de si, do mundo, da vida . Mal dava tempo de vestir, ia do jeito que estava, assim mesmo debaixo das cobertas, mas me dava sob a luz do dia descoberta. E inteira. Corria lentamente a enrodilhar os cabelos numa maçaroca só.  A " dona xepa" o pai dizia... ia descalça , pés planos pisar as pedras, a terra preta, roxa, o estrume deixado pelos cavalos que iam por lá comer capim.  Mal vestida e sem calcinha porque era chique ter calcinhas na época.. custava caro, tb ei nao gostava e metia qualquer roupa caindo do corpo. Martelo nas mãos sentava no toco de árvore  e tomava a quebrar pedras.  Juntava um monte para mistura de fazimento de casas. Revolvia a terra arrancava capins, colhia as verduras, frutas. Bertalha , subiam pelos muros, um mar de suculências , mãe ia fazer com ovos da galinha do quintal. Vó socorria nas faltas. Nos invernos que secavam tudo. Pai pegava serrote, eu segurava firme a madeira, às vezes entre as pernas agarrava como um cavalo tosco segurando a crina, a gente ia fazer apoio pra roldana, tinha corda mas corda sozinha não leva coisa a outra.  So da amarrações e nós. O balde já  tinha também.  Que eu já carregava massa de cimento, pedras e entulhos. E água.

A hora do café.  Eu subia correndo as escadas, mãe tinha já preparado quentinho adoçado, levava devagar descia os degraus e sentava na pedra com pai, a fumaça de novo subia. Era manhã ainda como uma grande peça do mosaico no teto.  E do painel da parede de meu quarto. Tomávamos em silêncio observando os detalhes despercebidos de outrora. A névoa do café, o cheiro da terra, a força sobrecomum, o Sol acendendo cedo o gosto pelos terrenos , quintais e jardins. Pelo suor sede e sangue das horas. Pelo labor! O sabor do café absorto em silêncios e reflexões, o ímpeto de levantar logo e ir ao som das tabancas do pai. A voz rude, grossa vibrando a casa. Vez em quando eu ia lá no quintal e tocava as violetas da mãe, orvalhadas de noite e lua. Algumas velhas como espumas de chuva e  mar outras novas como jovens coradas. E, por uns instantes, sentava a meio da escada e contava os degraus e o tempo que me levavam com justa medida ao pai e à mãe para que quando me chamassem eu pudesse - no tempo  mais ou menos exato e ao máximo que pudesse- atender lhes o chamado. Era bem difícil quando os dois me queriam ao mesmo tempo.  O que era engraçado é que pai dizia: "vai ajudar sua mãe " , ou ainda: " sua mãe está lhe chamando". E quando com mãe as vezes ela dizia embora me segurasse por  mais tempo em alguns momentos específicos que depois conto.  Então ela dizia:" seu pai está lhe chamando" ou " vai lá no seu e peça isto " ou ainda " vai ajudar ou cuidar ou trabalhar com seu pai". Na verdade os dois eram e são partes metades da mesma escada. Eu percorria os degraus daquela escadaria.  Que a noite ao topo eu contemplava cheia a lua, às vezes vazia ou pela metade e nas manhãs o Sol à tona, átono, às vezes esfumaçado pela névoa das montanhas. E sempre à minha cabeça de cabelos enrodilhados no topo ao meio-dia como uma superfície  de cristal, sal, trigo, neve, alva pelicula de mar. Tudo não é miragem.

(Continua no próximo...)

Alessandra Espínola 

Rio , primavera de 2021.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

...dá-me o teu tempo comigo, comunga de teu fluxo, de tuas dores, traumas, belezas, virtudes, caminhemos o caminho, o passo sem pressa, sem ...