sexta-feira, 14 de julho de 2017

vozes de lá

Um cheiro de mar turquesa no céu da boca. Um anil na língua. Um horizonte nos olhos. O peito uma terra natal , o barro queimando ainda. Corpo de tapera. Rio de flor e pedra. Raiz sustentando a margem. Família de ipês. Bambus chinês. O córtex no quintal. Pai dizia ser porco. A cabeça enterrada, sabe? Até hoje me esfarelo toda. Feito pó- pérola no chão. E corro pro mar. Bem no fundo. Não da pra ver. Lá é o meu lugar. Vez do quando venho à superfície. Daí solidão mergulha em mim. E me fisga toda como um anzol suspenso, um cravejado de cristal. Tinha piolhos na cabeça. Daí roeram meu juízo. Nunca tive pulgas atrás de orelhas. Palavra silêncio sempre me coçou. A língua tem cintilação de água viva. E não para quieta. Ando com urtigas gigantes dentro de mim. Saem feito brotação de flor com espinho e tudo. Rosáceas. Até hoje me assusto com essa serpente viva gigante que de vez em vez se desenrosca toda dentro de mim e sai pela minha boca. Espia tudo e sabe. Isso eu nunca falei pra ninguém. 
Saudades da vovó. Do café no bule. Da fumacinha cheirosa incensando as tardes na varanda. O cão a galinha a bananeira. Eu me encontrava no pequeno terreiro. Surgindo da terra úmida. E era assustada como samambaia toda fustigada de vento. Vovó? Era sol da tarde suavizando a vida, varando sutil a casa ,aconchegando a menina sentada ao lado do velho. E que saudade do velho! O seu vestido de cambraia. Vovó tinha retalhos nas mãos. Regava plantas com isso. Carregava água assim: lata na cabeça. Corpo cabaça. A esteira enrolada no canto da sala. A janela aberta. Cortina de cor. Rendas na ponta. Eu me franzia toda. Dava céu quando eu olhava. E bem do lado coladinho era uma África recém chegada. É saudade da tapera. Eu ali , era fogo! Também recém chegada. Uma sozinhança que até hoje me habita que desde sempre era só essa saudade de voltar pro mar...eu ali, um destrambelho só. Desembestada. Menina Impossível. Desassossegada. Corpo de cordas puxadas. Corpo de argila barro olaria. Areia, cimento e água na mão do pai. Corpo-casa, corpo-casulo, corpo córtex cópula, corpo-cuia, corpo-guia, corpo-vazado, corpo de ervas. Corpo de mata fechada. Sementeira pura. Saudade da vovó com seu corpo de Iara. Com seu tom de riacho dançando ao redor da casa. Subindo morro em vagarinho rezando em silêncio seu rosarinho. Vela acesa na escuridão. Calor e fogueira de São João. Abriu rotas. Construiu casas . Casas corpos, casa-festa. Abençoava os meninos. Bicha braba. Parecia Maria do Lampião. Raimunda. Ora se não! 
Ah...cheiro de lavanda na casa velha... 
Ah...Corpo de lavanda na alma em flor!

Alessandra Espinola

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